UFSM abre investigação após alunas denunciarem casos de assédio sexual no curso de Odontologia

Denzel Valiente,Eduarda Costa

UFSM abre investigação após alunas denunciarem casos de assédio sexual no curso de Odontologia
Caso que chegou na Reitoria aconteceu nas clínicas odontológicas. Foto: Eduardo Ramos (Diário)

Uma aluna do curso de Odontologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) denunciou à instituição um caso de abuso sexual que teria sofrido por parte de um paciente durante atendimento realizado em uma das clínicas de odontologia. A estudante comunicou a direção do Centro de Ciências da Saúde (CCS) sobre o assédio no início de novembro, após registrar Boletim de Ocorrência na Polícia Civil.A partir da formalização da denúncia, a Reitoria da universidade tomou conhecimento do caso. Conforme a vice-reitora Martha Adaime, ouvida pela reportagem, em casos de assédio é criada uma comissão para investigar o caso. A reportagem apurou que esses episódios não estariam ligados apenas a pacientes. Há casos em que professores também seriam suspeitos de assediar alunas.

Assédio em clínica odontológica

O episódio relatado pela estudante apareceu publicamente pela primeira vez em uma nota divulgada nas redes sociais do Diretório Acadêmico de Odontologia (DAO) da UFSM, em 16 de dezembro do ano passado. No texto, o DAO cita “atos de assédio sexual e importunação ocorridos no curso”.

A partir da publicação, o Diário ouviu quatro alunas que relataram violências sexuais no ambiente acadêmico. Para preservar a identidade das envolvidas, elas não serão identificadas. No caso citado pela nota do DAO, a vítima excluiu as redes sociais e não atendeu aos contatos feitos pela reportagem.

O assédio teria sido praticado por um paciente homem que já havia frequentado a clínica odontológica anteriormente e teria sido suspenso pelo mesmo motivo. Conforme explica uma ex-aluna do curso ouvida pela reportagem, devido à digitalização do sistema de cadastro dos pacientes, o nome do homem teria sido apagado e ele acabou voltando a frequentar uma das clínicas.

– Ele fez isso novamente com a aluna que estava atendendo. Chegou ao ponto de esperar a menina sair para o estacionamento da faculdade pegar o carro e ele ficava olhando. Adicionava na internet, mandava mensagem via WhatsApp e, agora, quando expuseram o caso dessa aluna que foi assediada, mais alunas falaram que estavam sendo assediadas. Elas têm medo de colocar a cara – relata.

Já outra estudante da Odontologia dá mais detalhes sobre o que teria ocorrido. Segundo ela, após a aluna ter denunciado o assédio do paciente para os professores responsáveis, a coordenação teria trocado o paciente de dupla, mas sem suspender os atendimentos a esse homem. Assim, o suspeito de assediar estudantes teria continuado a circular pela universidade.

– Parece que o estopim de tudo foi quando o paciente falou que não queria deitar na cadeira, e sim deitar nos seios dela porque era mais “fofos” – revela a aluna.

Casos são recorrentes

Segundo as alunas ouvidas pela reportagem, os casos de assédio sexual são recorrentes no curso de Odontologia. Durante os atendimentos em clínica – atividade obrigatória em que os alunos recebem a comunidade para consultas –, é que existe um maior contato com os pacientes. É da rotina dos estudantes terem o número telefônico do paciente, para acompanhamento via mensagem, e nesse momento também acontecem os assédios.

Em outro caso de assédio, uma aluna conta que até mesmo recebeu mensagem pornográfica de um paciente via WhatsApp. Ao relatar aos professores, o paciente teria justificado que outras pessoas utilizavam o mesmo celular e que, portanto, a mensagem não teria sido enviada por ele. Nesse caso, a aluna precisaria seguir realizando o atendimento desse homem, sem que ele fosse retirado do credenciamento.

– Eu mandei uma mensagem no WhatsApp para marcar uma consulta. Ele me mandou uma figurinha pornográfica, e foi muito conturbado até que eu conseguisse me abster do atendimento. Houve opiniões contraditórias entre os professores sobre o que fazer nesse caso, porque alguns acreditaram nele, ficaram com pena, e queriam que o atendimento continuasse comigo. No fim, consegui remanejar o paciente para outro colega e não precisei mais atendê-lo – relata.

Professor afastado  

Foto: UFSM (Divulgação)

Em 2017, um professor de Odontologia chegou a ser afastado devido a um caso de assédio com uma aluna. A vítima protocolou o caso em ouvidoria interna da UFSM junto à coordenação do curso. Questionados sobre o desdobramento, a gestão atual da coordenação disse não ter conhecimento desse caso.

– Eu fui constrangida na frente de colegas e pacientes. Na época eu era bem nova e não sabia como lidar com a situação. Lembro-me da vergonha que senti até mesmo para contar aos meus familiares. Pensei em largar o curso na ocasião. A universidade deveria ser um lugar de respeito e segurança. Foi uma frustração ter passado pela situação dentro de uma instituição de ensino, ainda mais por partir de um professor – diz a vítima.

Um quarto caso apurado pelo Diário envolveu outro professor do curso. Uma estudante conta que, durante atendimento em clínica, teria tido o corpo violado. Com o choque da ação, a aluna teve dificuldade de perceber e assumir que se tratava de uma situação de violência. O caso não chegou a ser denunciado.

– Eu fui pedir um auxílio para um professor e ele disse que já iria me ajudar, quando eu virei de costas para voltar para o equipo (cadeira de dentista) em que eu estava, ele deu um tapa na minha bunda. Na época, aquilo me incomodou profundamente, mas eu demorei um bom tempo para entender que essa situação se tratava de um assédio – desabafa.

O que diz a coordenação do curso

Coordenação fica localizada no mesmo prédio das clínicas. Foto: UFSM (Divulgação)

A coordenação do curso de Odontologia foi procurada pela reportagem pela primeira vez em dezembro de 2022. Devido ao recesso de final de ano, a entrevista foi dada em 4 de janeiro, pela coordenadora Cristiane Danesi, e pelo coordenador substituto Carlos Heitor Cunha Moreira.

Segundo Cristiane, o contato dos alunos diretamente com os pacientes via WhatsApp é uma abordagem recente e vinda da pandemia, institucionalizada como forma de evitar que pacientes com sintomas de Covid-19 frequentem as clínicas odontológicas. Ela afirma que existe um canal oficial de triagem onde os pacientes realizam o agendamento das consultas e que, assim que decretado o final da pandemia, o contato entre aluno e paciente via WhatsApp pessoal deverá ser extinto.

A coordenadora afirma não ter conhecimento sobre o fato contado pela aluna à reportagem, de que o homem acusado de assédio teria voltado a ser atendido na clínica por um erro no sistema de cadastramento. Cristiane e Moreira afirmam que, durante sua gestão – eles assumiram há cerca de seis meses –, receberam apenas uma denúncia feita pela vítima assediada pelo paciente na clínica e que ela não se deu via Diretório Acadêmico.

– Essa questão de recorrência com ela, ou com outros, a atual coordenação desconhece. O único caso chegou no início de novembro, é com essa aluna, uma única vez e todas as medidas cabíveis foram tomadas no momento – afirma, Danesi.

A coordenação diz que seguiu o padrão instituído pela Procuradoria Jurídica da universidade (Projur), comunicando às instâncias superiores e que, imediatamente, o paciente foi afastado da vítima e transferido para atendimento preferencialmente por um aluno homem em outro turno. Em caso de reincidência é realizado o afastamento e encaminhamento para uma unidade pública de saúde. A coordenação afirma ainda que a vítima foi orientada a fazer um boletim de ocorrência e que no documento optou por não dar continuidade ao caso.

– Para afastar um paciente do convívio aqui tem que ter um encaminhamento jurídico que, neste caso em específico, não foi solicitado. No momento em que ela coloca que não quer dar continuidade ao processo, muito pouco se pode fazer internamente, no sentido de tirar o paciente – diz a coordenadora.

Os coordenadores repudiam as formas de assédio e garantiram que a universidade e o curso “abominam” e “lamentam” esse tipo de discriminação e assédio e que os alunos têm canais para isso, como o Diretório Acadêmico, ouvidoria e as coordenações dos cursos.

– Realmente, nós temos que fazer um trabalho mais forte de precaver novos casos como esses. Não é só afastar esse paciente, isso é (criar) uma conduta, para outros que porventura venham (a acontecer). Enquanto docentes e toda a equipe, temos essa consciência de que isso tem que ser trazido para as instâncias competentes. Os alunos têm que se sentir seguros e confiar mais na instituição – completa Cristiane.

A reportagem também questionou a coordenação sobre os dois casos reportados por alunas de assédios praticados por professores. Em resposta, eles afirmaram terem assumido os cargos de coordenadores há seis meses e que não têm conhecimento de nenhum assédio e afastamento de docente da Odontologia. E que, nestes casos, existem protocolos técnicos e administrativos abertos de imediato pela UFSM e que não há nenhum processo em andamento neste momento que envolvam docentes ou funcionários do curso de Odontologia.

O que diz o Diretório Acadêmico da Odontologia

A reportagem ouviu de alunas que o Diretório Acadêmico da Odontologia teria minimizado denúncias de assédio. A direção do DAO preferiu não conceder entrevista. Entretanto, em resposta ao Diário, informou que, mesmo antes da postagem da nota de repúdio, a coordenação do curso já estava tomando todas as medidas necessárias e cabíveis e que o intuito da publicação foi incentivar as alunas a denunciarem. O diretório e a coordenação “estão em contato com a Pró-Reitoria e está sendo criado um protocolo para quando ocorrer (novos casos de assédio)”.

O que é um diretório?

Os diretórios acadêmicos (DAs) de cada curso são compostos por um grupo de estudantes, eleitos pelos acadêmicos, para representá-los, mediar os problemas enfrentados pelos alunos e garantir que seus direitos não sejam violados. O DA também é um fiscal das atividades da instituição e precisa estar inseridos nos colegiados e congregações das Comissões Próprias de Avaliação (CPAs), que fazem parte do Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior).

O que diz a UFSM

Prédio da Reitoria da UFSM. Foto: Eduardo Ramos (Diário)

O Diário entrou em contato com a Reitoria da UFSM, ainda em dezembro. Conforme a vice-reitora, Martha Adaime, no assédio por parte do paciente à aluna, a denúncia foi protocolada em Boletim de Ocorrência e enviada, posteriormente, para a direção do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da  UFSM. Conforme Martha, os centros de cada área do conhecimento são os responsáveis por apurar as denúncias em cursos que fiquem sob sua gestão. No caso da Odontologia, o CCS.

– Muito embora a aluna no BO tenha feito uma menção de que não quer que vire um processo-crime, estava somente denunciando, a universidade precisa apurar esses fatos e tomar as providências – explica.

O processo de investigação se dá a partir de uma comissão formada por três pessoas, sendo um professor, um técnico e um aluno. Nas apurações, que duram cerca de 30 dias, são realizadas oitivas. Após, deve ser apresentado um relatório final. É a partir deste documento que medidas práticas são tomadas. A universidade também segue protocolos distintos para casos de assédio praticados por ou entre alunos e servidores, e para casos que envolvam alguém de fora da instituição, como o paciente.

O que configura assédio sexual?

O assédio sexual é toda a forma não consentida de incitação sexual, sejam verbais ou físicas, em que o agressor utiliza de sua posição superior em relação à vítima para obter o que deseja mediante imposição. Na maioria das vezes, a violência parte de alguém do convívio da vítima, seja do ambiente de trabalho, ensino ou familiar. Segundo dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 79,6% dos casos de violência sexual denunciados no país em 2021, o autor era conhecido da vítima.

É considerado crime, previsto no artigo 216 do Código Penal: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

Como realizar denúncias na UFSM

É possível denunciar os casos de assédio moral e sexual envolvendo servidores, professores ou alunos da universidade por meio da Ouvidoria Geral da UFSM, de maneira pública ou anônima. As manifestações podem ser realizadas pelo site do Portal da Ouvidoria, e possibilitam a resolução dos casos e acolhimento e suporte necessário para a vítima.

O que diz o Código de Ética da Odontologia

Segundo o código de ética da profissão, é direito fundamental do dentista “se recusar a exercer a profissão em âmbito público ou privado onde as condições de trabalho não sejam dignas, seguras e salubres“. Os atendimentos clínicos da universidade são o ambiente de ensino dos acadêmicos, e, se o ensino está sendo prejudicado, as alunas lesadas deveriam ter o direito de se abster do atendimento, e, o paciente ser remanejado para serviços públicos de saúde disponíveis na cidade.

Atualizado as 13:14 de 20 de janeiro de 2023.

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Brasil recebe mais 50 mil doses de remédio contra a covid-19 Anterior

Brasil recebe mais 50 mil doses de remédio contra a covid-19

Morre a pessoa mais velha do mundo aos 118 anos; conheça a Irmã André Próximo

Morre a pessoa mais velha do mundo aos 118 anos; conheça a Irmã André

Geral